Fala, Senhor, que teu servo escuta!

E m nossos tempos, subsiste ainda, em muitas pessoas, a ideia de que o hábito de ler a Bíblia “é coisa de protestante, não de católico”. Trata-se, é claro, de um estereótipo bastante inadequado.

Na verdade, a Igreja, já desde seus primórdios, venerava as Sagradas Escrituras: diante das perseguições do Império Romano, muitos católicos pagaram com a própria vida, tornando-se, assim, mártires, por sua recusa em entregar os manuscritos sagrados para serem queimados.

Sempre havia, também, a consciência acerca dos frutos espirituais da leitura orante e assídua da Bíblia. Em sua troca de correspondências, São Jerônimo († 420) recomendava a seu amigo Eustóquio a meditação assídua da Palavra, de modo a que “o sono o encontrasse com a Bíblia nas mãos, e que sua cabeça, quando cedesse ao sono, descansasse na página sagrada”. O mesmo São Jerônimo escrevia à mãe cristã Leta que todo dia tomasse de sua filha um relato sobre sua leitura bíblica: a menina deveria estudar primeiro os Salmos e aproveitar suas melodias; depois ler os Provérbios e o Eclesiastes, para aprender sobre sabedoria; e a história de Jó, sobre a paciência. Na sequência, deveria passar aos Evangelhos – os quais desde então permaneceriam sempre em suas leituras diárias – e ao restante do Novo Testamento. Apenas depois de conhecer bem este tesouro é que se deveria passar a ler o restante do Antigo Testamento: a Lei e os Profetas (cf. encíclica Spiritus paraclitus, 41-43, do Papa Bento XV).

É verdade, porém, que já houve, na história da Igreja, algumas heresias surgidas de uma leitura apressada das Escrituras e desvinculada do ensinamento dos apóstolos. E não nos referimos apenas ao protestantismo: séculos antes de Lutero (1483-1546), a Bíblia já desde o século XIII vinha sendo abusada pelos cátaros, pelos valdenses e pelos lolardos, para justificar todo tipo de erro, a partir de traduções tendenciosas para os idiomas vernáculos. Em tais contextos, foram adotadas algumas cautelas com relação à circulação dessas traduções não autorizadas da Escritura – pois a lei suprema da Igreja é a salvação das almas, colocada em perigo por estas correntes heréticas. De todo modo, quem desejar se aprofundar nos motivos pelos quais os princípios protestantes da livre interpretação e do Sola Scriptura não encontram apoio na história da Igreja e no ensinamento dos apóstolos pode consultar o saboroso livro “Todos os caminhos levam a Roma”, no qual o ex-pastor presbiteriano Scott Hahn conta a história de sua conversão ao catolicismo a partir de um estudo aprofundado da própria Escritura.

O cisma protestante, no entanto, já aconteceu há muito tempo, e no último século a Igreja tem cada vez mais “exortado os fiéis a ler diariamente os Evangelhos, os Atos e as Epístolas, para deles extrair alimento da alma” (Spiritus paraclitus, 43). Em 1943, o Papa Pio XII nos lembrou da gratidão que devemos ter à “amorosíssima Providência de Deus, que do trono da sua majestade nos mandou esses livros como cartas do Pai celeste aos próprios filhos” (encíclica Divino afflante Spiritu, 13). E o Concílio Vaticano II “exorta com ardor e insistência todos os fiéis (…) a que aprendam ‘a sublime ciência de Jesus Cristo’ (Fl 3,8) com a leitura frequente das divinas Escrituras”. O mesmo Concílio adverte, porém, que “a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada de oração, para que seja possível o diálogo entre Deus e o homem; porque ‘a Ele falamos, quando rezamos, a Ele ouvimos, quando lemos os divinos oráculos’” (Dei verbum, 25).

Para quem ainda não tem acesso a um bom curso de estudos bíblicos, um jeito simples e tradicional de tomar mais contato com a Bíblia é ler os quatro evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João), um capítulo por dia, separando 10 ou 15 minutos para uma leitura meditada. Leiamos, pois, a Escritura, e digamos a Jesus “Loquere, Domine, quia audit servus tuus” – “Fala, Senhor, que teu servo escuta!” (1Sm 3,9).

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